quinta-feira, outubro 17, 2019

Pra onde

A poesia se foi e eu não sei em que ralo ela se enfiou.
Por qual esgoto escorreu e em qual rio desaguou.

Só sei que ela se perdeu e nunca mais me achou.

Mapa

Instrução 1

Abra o livro de capa azul na página 57.
Leia para os arbustos o terceiro parágrafo em voz alta.
Desenhe a quinta frase com giz verde em uma caixa de papel.
Queime com alecrim.

Instrução Dois.

Prepare uma cesta de frutas, de olhos fechados.
Cubra com um tecido leve.
Pressione com as mãos e sinta o contorno de cada elemento.
Registre em papel e escreva uma dedicatória de carinho.
Dobre e coloque na caixa de correio de um desconhecido.

Shame.

Hoje me sinto envergonhada.
Me leio antiga.
Me leio relapsa.

Hoje sinto que o tempo escapou por mim
e andei muito pouco por onde vim.

Sinto que tentei um caminho
previamente traçado,
não construído.

Hoje tenho vergonha de mim.
Das expectativas sobre mim mesma,
sem fundamento..

Me deparo com as minhas falhas,
minhas brechas esquecidas,
e me vejo presa vulnerável.

Me queria mais forte.
Mais solitária.
Mais impermeável.

Void

Meu dia vai passando e tento não existir.
Aflição que sobe pela espinha e tomba no estômago.

Insensatez que borra os sentidos.

Minha tarde se arrasta em meio ao convívio.

Frases soltas que atravessam os tímpanos.
Nenhum sentido apreendido.
Void-me.

Da tristeza.

Tem uma dor dentro de mim.
Tem uma pedra cimentada no meu peito.

Tem um vazio na boca do estômago.
Tem um vômito ácido querendo sair.

Meu corpo se desmancha.
Como se não houvesse mais possibilidade de ser inteiro.

Dilaceraram um jardim que crescia em mim.
Esmagaram lixo nas águas límpidas da minha correnteza.
Jogaram lama na nascente.

Cuspiram.

Tem um desgosto dentro de mim.
Tem um receio de viver.

Tem tudo o que eu não queria mais ver.
Tem o choro que nunca mais brotou.


Concretaram meu corpo vivo.
Fiquei sólida. Seca. Áspera.
Não sou mais eu.

abismos repaginados

Quando me atirei ao abismo,
eu já o sabia.

Sabia do risco
De não ter volta

Me lancei com medo e não alcei vôo.

Esbarrei nas pedras.
Me cortei nos arbustos do penhasco.

Quando me atirei ao abismo,
eu já o sabia.

Mas quis o perigo mesmo assim.
Me sabendo tola,
me arrisquei mesmo assim.

Uma vontade absurda de perdição,
De sentir a transitoriedade da vida,
De ser kamikase.

Um desprezo pelo ordinário,
uma arrogância pelo sensato.

Pacato, cordato,
que chato.

Quando me atirei ao abismo,
eu já o sabia.

Havia certeza do erro,
Do engano,
Mas da arte do imprevisto.

Otimista e inconsequente
me joguei mesmo assim.

Fantasiando um percurso inesperado,
previamente sabido fracassado.

Queria ser capaz de alterar leis físicas.
Prepotência andante.

Mas era abismo.
E eu já o sabia sem volta.