quarta-feira, agosto 23, 2023

Dos afetos e das impermanências.

Aqui, em meio às tuas coisas, penso em começar a escrever - como modo de entender e ao mesmo tempo dar vazão ao sentir que ainda não se permitiu existir. Cada espaço é brecha do sentir, oculta por uma camada de razão que tenta, e muito, não fazer doer e não se perder. Embora já tenha se perdido o tempo e a razão várias vezes, por hora algo segue resistindo e encobrindo um bando de pássaros dentro de mim.
Em meio às tuas coisas estou. Sem sair do lugar. Repetindo internamente o apagar de lembranças e sensações, numa tentativa constante de sempre ter um zero como ponto de partida. Em apagar a possível construção de uma história. 
Estamos fadados ao fracasso é o que dizem os Mistérios. Mas ao mesmo tempo algo em mim insiste na percepção de uma potência que não sei de onde vem.
Sem história, sem futuro, só há cada instante. 
E o instante é sempre precioso e repleto de profundidade e poesia. Algo efêmero, que ao mesmo tempo alcança espaços quase inacessíveis. Talvez por teu olhar e mente que penetram em mim sem que eu ofereça muita resistência. Em um desejo de ser invadida e descoberta - na beleza que não ouso afirmar a quem não se dedique a olhar com detalhe.
Aqui em meio às tuas coisas, fico ainda em processo de canalizar as palavras que não têm o corpo que somos e que somente podem dizer de pouco do que vivemos.
Há um vazio aqui. Mesmo que rodeada de coisas tuas. Na verdade nem sei se são tuas, na verdade talvez - inclusive - esse seja um espaço outro, sem pertencimento e sem identidade ou registro no tempo.
Talvez eu esteja inserida em uma lacuna, em um não-lugar que se abre em meio à vida que tivemos, que temos, que algum dia vamos ter, e que diante das quais não nos é reservado lugar ou presença. 
Não sei dizer sobre o que opera em mim agora. Nesse instante de escrita sobre algo que não existe mesmo que tenha corpo e sentido.
Tento te alcançar nesse habitar do lugar que te abriga. Mas não consigo. Temo. De temor mais do que amor é feito esse convívio. Sinto em mim e sinto também em ti.
Queria escrever pouco e de forma bonita. Queria um poema, simples como os teus. Mas não foi isso que saiu. Me sai por aqui uma retórica que se constrói num quebra-cabeça.
Queria sentir mais? Ou talvez sentir menos? 
Não tenho dimensão do sentir e não compreendo por onde vamos. Mas intuitivamente vou indo, apesar das predições contrárias e das catástrofes profetizadas. O motivo não é conhecido, pois não se pensa a respeito. Melhor não saber do querer, quando se está frágil e não se confia no chão em que se pisa.
Gosto. Gosto muito do que temos. Mas também temo muito por onde vamos.
Temo as aventuras a nos separar e o passado que pode nos ultrapassar. Temo o meu instinto de comunhão e o teu pedido de separação. 
Aqui escrevo e, em meio a palavras colocadas em deriva, sigo sem saber do que somos. Não que eu tenha intenção de desvendar uma certeza provisória que nada vai nos acrescentar - pois o ser é maior que definição. Mas há nisso um convívio com a angústia e não posso negar tal situação. 
Penso que com tanto corpo e suor e saliva e prazer, nada disso ou pouco disso surgiu por aqui. Me intrigo pelo fato de o fardo me ocupar mais do que o belo que compomos juntos. Talvez ocorra pela característica incorpórea do discurso, não me parecendo fazer sentido tornar abstrato o que tem dimensão real. Talvez ocorra por não estares aqui e a experiência do corpo comum ficar incompleta no relato parcial de tantas palavras imprecisas. Seja de que modo for, penso no desejo de gravar aqui algo dessa experiência física ainda não dita, mas tão celebrada.
Se eu for falar ou escrever desse encontro e do que ele move em termos de libido, de sexo, de orgasmos, de entrega.. parece que será sempre pouco.
Nada do que for escrito vai dar a correta dimensão do que significa te olhar profundamente quando estamos entrelaçados por braços e pernas e toques e mordidas, e violências permitidas como sinal de entrega.
Me interrompeste. Sim, nesse exato momento recebo uma mensagem tua. E respondo com a revelação de que escrevo algo. Te revelas curioso. E eu penso em compartilhar contigo esse íntimo relato, mas evito. Não digo o que componho e domino meu impulso de doar a ti tudo o que tenho. Quero guardar algo pra mim, mas não sei bem como.
Passo a pensar sobre o tipo de pessoa que sou e o tipo de pessoa que consigo ser com o outro e que, talvez, possa ser contigo. O que sobra pra mim é sempre pouco, quando me ofereço como regalo ao interesse e curiosidade alheios.
Temo novamente, mas - dessa vez - por não ter preservada a minha liberdade e o meu desejo, ao querer te ver feliz. Receio me doar inteira e não ter nada de mim para mim. Me sentir sedenta de mim é algo antigo e fala do longo percurso pelo qual a vida me conduziu. Sempre compreendendo o desejo do outro como o motor de felicidade e alegria passível de ser compartilhada. Tu conseguiria ser feliz por mim? Realizar o meu desejo em que medida te faria feliz?
Sei dos percalços que nossos desejos distintos e contrastantes podem colocar adiante. Sei da ficção que já criei na mente diversas vezes e perante a qual tu permaneces inerte. A falácia do inventado não te toca. Mas se tudo é inventado, então o que te move e faz sentir? O mundo físico, o mundo sutil, o mundo do espelho?
Não tenho ideia sobre o que compõe o teu modo de ser e temo pelo que significa haver quem saiba mais do que eu. Respeito a intimidade de quem eu, talvez, ame. E me assusto ao dar nome de sentimento a algo ainda sequer permitido a sentir por completo. Tento entender de onde vem esse nome e porque ele surge agora, justo quando falo de quem tenha passado e história e presente e futuro contigo. Esse alguém que parece ter tudo o que a mim não é possível e que respeito pelo valor que possui pra ti.
Me sinto pequena. E invisível. E menos a cada segundo que passa no relógio, com seu registro de tempo irregular.
Queria acreditar que os instantes que temos e compartilhamos são maiores que o tempo todo passado com outros. E que podemos estar no mundo e nas outras relações sem que a nossa intimidade se perca ou seja invadida e atravessada por novos encontros e antigas memórias. 
Lembro dos encontros que tive e imagino os encontros que posso ter. Penso sobre o que significa me aventurar por outros corpos e te perceber entregue à liberdade de também o fazer. Entendo a beleza desse mundo possível, mas antevejo a distância imperando entre nós - pois não sabemos negar a riqueza da intimidade e a nossa, assim como é, deixaria de existir.
Receio e tento evitar pensar novamente. Adentrar esse universo me parece irresponsável com a preciosidade do encontro que ainda nem temos. Me pergunto se algum dia teremos esse tal encontro e então receio mais um pouco. Mas dessa vez penso em não ir adiante. Penso em querer te negar, te afastar, te bloquear de existir dentro de mim. Penso em me negar a ti. Desejo ter um bunker e me afastar da potência destruidora do nuclear encontro que temos. Nos vejo como a bomba e não mais como a potência criativa de mundos.
De repente me sinto exausta. Cansada de elucubrar e conjecturar e imaginar cenários e corpos unidos e separados.
Quero parar de escrever. Mas insisto um pouco mais. Há ainda tanto para registrar do afeto e da companhia que temos. Me pergunto, por um instante, se o que existe é só substância que há dentro de mim.. Me descubro querendo invadir a tua mente e o teu coração e o teu espírito e a tua existência, na intenção de saber o que há de nós dois em ti. Algo perverso, mas que vem da profunda vontade de estar junto e compartilhar a vida de forma plena e inteira. Me envergonho da invasão imaginada e sequer cogitada. 
Tenho piedade de mim. Mas deveria dedicar amor. Pois vejo a imperfeição, mas também o genuíno cuidado de não tornar ação aquilo não desejo para mim. Mas percebo agora a contradição que há nesse querer e não querer, que vem em mesma medida e que bagunça o que há por dentro sem deixar qualquer coisa no lugar.
Me sinto exausta. E só queria deitar contigo no silêncio e no calor do teu corpo a aquecer o meu - em sua composição fria. 
Se eu nasci do fogo, eu nasci também do incêndio e de tudo o que ele destruiu.

quarta-feira, março 04, 2020

Das origens nunca fica o vazio.

Hoje foi o dia em ela se foi. Aquela que me produziu no ventre repleto de amor e esperança na vida.
Aquela que me ensinou que a gente sempre segue.
Aquela que foi a mais forte na existência difícil.
Aquela que cantava.
Aquela que sempre achava que eu merecia mais.
Aquela que sempre me puxou as orelhas.
Aquela que me deu colo até os 40 anos.
Aquela que me ensinou a sorrir.
Aquela que me olhava orgulhosa da cria.
Aquela que sabia do meu imenso amor por ela.
Aquela que lia os livros na minha infância. 
Aquela que não deixava o meu pai me segurar no colo, porque tinha medo que eu caísse. 
Aquela que me comprou as roupas mais bonitas.
Aquela que me fez cafuné. 
Aquela que meteu o dedo na cara de homem que brigou com a filha dela.
Aquela que nunca se aquietou.
Aquela que fez arte na infância e na velhice.
Aquela que foi a mais viva das mulheres.
Aquela que se orgulhava da maternidade e estendia o afeto para além do sangue.
Aquela que resistiu apesar da adversidade.
Aquela que amou o meu pai.
Aquela que sempre foi grata.
Aquela que vive em mim.
Angelina.

quinta-feira, outubro 17, 2019

Pra onde

A poesia se foi e eu não sei em que ralo ela se enfiou.
Por qual esgoto escorreu e em qual rio desaguou.

Só sei que ela se perdeu e nunca mais me achou.

Mapa

Instrução 1

Abra o livro de capa azul na página 57.
Leia para os arbustos o terceiro parágrafo em voz alta.
Desenhe a quinta frase com giz verde em uma caixa de papel.
Queime com alecrim.

Instrução Dois.

Prepare uma cesta de frutas, de olhos fechados.
Cubra com um tecido leve.
Pressione com as mãos e sinta o contorno de cada elemento.
Registre em papel e escreva uma dedicatória de carinho.
Dobre e coloque na caixa de correio de um desconhecido.

Shame.

Hoje me sinto envergonhada.
Me leio antiga.
Me leio relapsa.

Hoje sinto que o tempo escapou por mim
e andei muito pouco por onde vim.

Sinto que tentei um caminho
previamente traçado,
não construído.

Hoje tenho vergonha de mim.
Das expectativas sobre mim mesma,
sem fundamento..

Me deparo com as minhas falhas,
minhas brechas esquecidas,
e me vejo presa vulnerável.

Me queria mais forte.
Mais solitária.
Mais impermeável.

Void

Meu dia vai passando e tento não existir.
Aflição que sobe pela espinha e tomba no estômago.

Insensatez que borra os sentidos.

Minha tarde se arrasta em meio ao convívio.

Frases soltas que atravessam os tímpanos.
Nenhum sentido apreendido.
Void-me.

Da tristeza.

Tem uma dor dentro de mim.
Tem uma pedra cimentada no meu peito.

Tem um vazio na boca do estômago.
Tem um vômito ácido querendo sair.

Meu corpo se desmancha.
Como se não houvesse mais possibilidade de ser inteiro.

Dilaceraram um jardim que crescia em mim.
Esmagaram lixo nas águas límpidas da minha correnteza.
Jogaram lama na nascente.

Cuspiram.

Tem um desgosto dentro de mim.
Tem um receio de viver.

Tem tudo o que eu não queria mais ver.
Tem o choro que nunca mais brotou.


Concretaram meu corpo vivo.
Fiquei sólida. Seca. Áspera.
Não sou mais eu.

abismos repaginados

Quando me atirei ao abismo,
eu já o sabia.

Sabia do risco
De não ter volta

Me lancei com medo e não alcei vôo.

Esbarrei nas pedras.
Me cortei nos arbustos do penhasco.

Quando me atirei ao abismo,
eu já o sabia.

Mas quis o perigo mesmo assim.
Me sabendo tola,
me arrisquei mesmo assim.

Uma vontade absurda de perdição,
De sentir a transitoriedade da vida,
De ser kamikase.

Um desprezo pelo ordinário,
uma arrogância pelo sensato.

Pacato, cordato,
que chato.

Quando me atirei ao abismo,
eu já o sabia.

Havia certeza do erro,
Do engano,
Mas da arte do imprevisto.

Otimista e inconsequente
me joguei mesmo assim.

Fantasiando um percurso inesperado,
previamente sabido fracassado.

Queria ser capaz de alterar leis físicas.
Prepotência andante.

Mas era abismo.
E eu já o sabia sem volta.


quarta-feira, outubro 17, 2018

Desfiar e voar

Houve uma vez um encontro.
Com muitas vozes e rostos.

Um encontro de fios de seda, tramando um tecido leve e resistente, colorido.

Houve uma vez um bordado.
A desenhar no tecido percursos diversos de amor e atenção.

Um desenho de imagem forte para durar.

Houve uma vez uma força que parecia infinita.
Tanto quanto o desejo de estar junto e crescer e mudar o mundo.

Capaz de fazer da dor a semente para algo bonito.

Houve uma vez uma boniteza.
Daquelas que se quer pra vida toda.

Mas que por um passo em falso, um detalhe, um pequeno rasgo, desfiou a trama.
Desfez a forma. Soltou ao vento seda e cor a voar.

Houve uma vez uma nova possibilidade.
Um possível sempre com jeito de saudade.

terça-feira, junho 05, 2018

In-vernas

Quero mergulhar na água e viver com os peixes.
Não quero sair do útero da terra.

Quero menos civilização.
Mais cheiro de terra e capim.

Quero a pureza dos urros dos animais.
Como se a palavra não tivesse sido inventada.

Porque a palavra, o concreto, o árido me matam aos poucos.

E eu sou viva demais pra andar por entre humanos.

quarta-feira, janeiro 24, 2018

Matrimônio

Detesto as palavras.
Elas são curtas, pequenas, sem sentido diante de tudo o que elas precisam dizer e não conseguem.

Entorto as palavras.
Misturo as palavras.
Costuro cada uma na tentativa infinita de fazer com que sejam mais.

Gosto das palavras, até.
Mas daquelas que se desprendem do dicionário.
Que se desligam da comunicação imediata.

Gosto das palavras que fazem curvas.

Gosto quando elas topam formar corpo maleável.

Palavras que deixam de ser palavras pra virar composição.
Palavras que aceitam o fato de não terem sentido-destino e que se desfazem do que dizem sobre elas.

Poesia do desenho com letras.
Dessas eu gosto, por essas eu me apaixono.
Com essas eu quero viver a vida inteira.

terça-feira, dezembro 19, 2017

Pra longe de você

Por vezes chega a hora de partir.
Chega a hora de seguir outro caminho e deixar os amores e rumores pra trás.
Ter outro rumo na prosa e rumar na poesia das almas leves e sem medo.

Porque nessa hora a gente também dá adeus ao que é pequeno, ao que se esgota na capa macia e tem recheio de fel.

É ir pra longe, porque a vida é sempre maior.

VIVER A VIDA DOS FORTES.

Em tempo de separar o joio do trigo e ir além da fronteira do pouco.

Partir enquanto o peito ainda é repleto de amor.